sábado, 3 de janeiro de 2015

A noite continuava fria

A sonoridade dos pingos de chuva, puros e isentos de qualquer forma predefinida, contrastavam com as músicas de natal das quais somos alvo nesta época, quer vinda das lojas que anseiam desesperadamente só por mais um cêntimo ou do grupo da igreja, que percorre o mundo se for preciso, desejando que uma alma caridosa doe um pouco de pão ou algo do género que possa diminuir o estômago roncador de muitas almas solitárias.
As árvores apresentavam-se despidas, somente com uma ou outra folha amarela ou vermelha, que exibiam com o maior orgulho. O céu estava carregado de estrelas- cena improvável quando chove, pois as nuvens costumam vencer o brilho e a beleza daqueles astros que aos nossos olhos parecem insignificantes no universo.
No entanto, aquele fenómeno improvável ocorreu naquela noite. Aquela noite de Natal foi diferente de todas as outras. Não só pelo esplendor daquele fenómeno observável e lindo a quem saia à rua e olhava para o céu infinito, como também pelo impacto que teve na minha vida.
Eu era uma advogada bem-sucedida na carreira, não tanto no AMOR. Sim, AMOR com letras grandes. Porque não falo daqueles amores pequeninos, que viraram moda nos nossos dias, que juntam pessoas pelo dinheiro, pela profissão ou pela cor dos olhos. Falo sim naquele AMOR que ao que parece desapareceu sem se despedir de quem cá ficou; um AMOR incondicional, marcado por grandes provas de entrega e acima de tudo de lealdade.
Nunca fui muito dada aos outros, sempre fui mais de olhar só para mim! Talvez esta má prática tenha crescido comigo desde os primórdios da minha vida. Na verdade, limitei-me a seguir o que observava à minha volta: um pai empresário que raramente parava em casa; uma mãe excêntrica dada a luxos meramente para reunir o maior número de falsas amigas… Na verdade, uma família que não o era. Costumava dizer que vivia num grupo de pessoas que se juntou para tirar o maior proveito dos outros, neste caso, dinheiro.
Para mim, não existiam datas festivas. Até porque não tinha com quem festejar. Ter pessoas especiais na minha vida era algo muito inconstante e invulgar. As noites de Natal, de Ano Novo, de Aniversário nunca se assumiram como dias especial. Estes eram passados no escritório ou em casa a ver filmes e a comer pipocas, com as quais tento me deliciava.
Só que naquela noite, aquela noite que já vós falei, decidi mudar. Não falo em fazer um penteado novo ou comprar umas roupas menos velhas que as anteriores. Falo sim, em transformar-me, em moldar o meu ser, de acordo com a pessoa que sempre quis ser.
Resolvi que iria sair de casa, que iria percorrer a rua e deixar-me a mercê do que aquela noite me poderia trazer.
Despi a máscara, e caminhei.
Caminhei sentindo o duro chão que pisava, e respirando todo o ar que conseguia depositar nos meus pulmões.
Ao longe da rua avistei um grupo de vultos que, à medida que caminhava, se tornava mais nítido. Tratava-se do grupo da igreja cantando para os sem- abrigo. Fiquei a observar, por momentos, não sabia se na minha cara continha lágrimas ou pingos de chuva, na medida em que estes se confundiam com as minhas emoções.
Esperei que estes pequenos cantores, mas que na verdade são verdadeiros heróis partissem para junto das suas famílias de sangue para que eu me juntasse àquela que viria a ser a minha família de coração.
Aproximei-me deles que me receberam com um “Boa noite” ligeiramente apático. Não estranhei. Que mais poderia eu esperar? Que me oferecessem a refeição que não tinham?
Sabia que no meio deles, as pessoas como eu, cheias de dinheiro mas com um coração vazio, não eram bem vistas e não era para menos. Quantas vezes passei eu carregada de dinheiro dos pés à cabeça, junto deles sem nem um sorriso expressar?
Todavia, eles foram o que aquela noite me traçou. Foram os impulsionadores da minha mudança e os meus pequenos grandes heróis que me salvaram de um caminho tenebroso e sem estrelas brilhantes, como aquelas que iluminaram a minha primeira noite de Natal, para iluminarem a minha caminhada.
Hoje, larguei os luxos e despi a máscara que me prendia a algo que não me pertencia.
Continuo a ser advogada, mas com uma pequena particularidade, ajudo quem não tem milhares de euros para me pagar.
Por isso digo-te:
Vai! Corre! Grita ao mundo o que sentes… Despe essa máscara e elabora tu a tua própria peça.
Sê feliz, com tudo ou com pouco. Mas lembra-te que às vezes ter muito é ter pouco e ter pouco é ter muito.

Sorri, mas chora! Porque as tuas lágrimas são o espelho da tua alma, e sem te mostrares ninguém saberá aquilo que és! Nem mesmo tu!

Inês Gonçalves

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